sábado, 9 de março de 2013

OS MISTÉRIOS DA PÁSCOA


 Agora é diferente, virou venda frenética de chocolates, pacote turístico, meia dúzia de filmes bíblicos pela tevê (Victor Mature, Deborah Kerr, Jean Simmons). Mas naquele período jurássico quando nasci e cresci, Semana Santa era coisa séria. Não apenas séria, mas misteriosa. Mais que misteriosa, até mesmo um pouco aterrorizante.
Vários e vagos mistérios, alguns até hoje não esclarecidos. Não se podia comer carne — e não só na Sexta-Feira Santa, não, que hoje fazem um bacalhauzinho e pronto. A semana toda, ninguém comia carne. “O corpo de Cristo”, diziam, e era inevitável sentir-se meio canibal só em pensar num bom bife. Havia também a obrigação do silêncio. Não se podia brincar barulhento demais, rir muito alto, tinha-se que manter ar contrito, enlutado. Cantar então era um sacrilégio brabo, principalmente na Sexta- Feira, quando não se podia nem ligar o rádio. Mas se o rádio continuava funcionando — e tocando música —, por que não se podia ligá-lo? E os donos das rádios, por que perdiam tempo com as emissoras no ar se era proibido sintonizá-las? De que adianta uma rádio no ar, se ninguém escuta? Não havia resposta. Havia, isto sim, silêncios demais nas Semanas Santas de antigamente.
“Jesus morreu” era a única resposta. E lá estavam na Igreja os santos todos cobertos por panos roxos e pretos, assustadores.
Na Sexta-Feira (e por que “da Paixão” ninguém explicava), uma mórbida, lívida estátua de Cristo dentro de um caixão de vidro. Me fascinavam as gotas de sangue, rubis sobre a pele. Muitas vezes tive a tentação de arrancar uma com a unha, guardá-la só para mim. O medo do pecado mortal era o que me detinha. No dia em que Cristo está morto, diziam, cada pecado multiplicava-se por mil, pois era também o dia em que o demônio estava solto. E com toda corda, poderosíssimo. Na Sexta-Feira Santa tinha-se que andar na ponta dos pés, falar em voz muito baixa e não cometer absolutamente nenhum pecado — mesmo os mais bestas, tipo espetar bumbum de formiga com agulha de costura — para não atrair o demônio. Com ele solto, pecados normalmente leves tinham a sua gravidade multiplicada, eram capazes de arrastar alguém ao fogo dos infernos por toda a eternidade.
No Sábado de Aleluia, Jesus ressuscitava. Podia-se começar a gritar, a cantar, a dizer palavrão, enfim: a pecar à vontade outra vez. Mas ninguém explicava por que toda aquela tristeza do dia anterior, se todo mundo sabia que Cristo acabaria ressuscitando no dia seguinte. Era puro fingimento? Hoje sei, era mesmo. Ou não fingimento, mas liturgia, rito. Mistério maior era no domingo, acordar cedo para procurar pela casa toda os ninhos feitos em caixas de sapato, com papel de seda, palha e cola de farinha de trigo danada pra embolar. Os ninhos estavam cheios de ovos de chocolate deixados pelo coelhinho da Páscoa. Ótimo, claro, que criança não adora se empapuçar de sugar blues?
Mas ninguém nunca explicava qual a relação entre a morte e a ressurreição de Cristo com ovos de chocolate. E muito menos com coelhos. Galinha de Páscoa seria mais lógico. Ou pata, vá lá. Agora, coelho? E tem mais: não era coelha, era coelho mesmo. Coelho então também bota ovo? Só na Páscoa, talvez. Ou talvez apenas faça ovos, não ponha, eu refletia. Eu refletia muito naquele tempo.
Nos anos seguintes devo ter perguntado sobre isso, e até mesmo ouvido alguma resposta satisfatória. Vagamente, na minha cabeça, ronda uma lenda qualquer, talvez polonesa. Ou quem sabe misturo isso àquela tradição polonesa de pintar ovos de Páscoa (aliás, tenho um lindo que ganhei em Curitiba). Acho que não prestei atenção, pelo menos não lembro de nada. Também não quero que me expliquem agora. Tem muita coisa que, francamente, cá entre nós, não faço mesmo questão de saber.


Zero Hora, 1/4/1995

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Vai Passar

Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está ai, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada "impulso vital". Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te supreenderás pensando algo como "estou contente outra vez". Ou simplesmente "continuo", porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras grandiloqüentes como "sempre" ou "nunca". Ninguém sabe como, mas aos poucos fomos aprendendo sobre a continuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicidio nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim - nós, não. Contidamente, continuamos. E substituimos expressões fatais como "não resistirei" por outras mais mansas, como "sei que vai passar". Esse o nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cômodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência.
Claro que no começo não terás sono ou dormirás demais. Fumarás muito, também, e talvez até mesmo te permitas tomar alguns desses comprimidos para disfarçar a dor. Claro que no começo, pouco depois de acordar, olhando à tua volta a paisagem de todo dia, sentirás atravessada não sabes se na garganta ou no peito ou na mente - e não importa - essa coisa que chamarás com cuidado, de "uma ausência". E haverá momentos em que esse osso duro se transformará numa espécie de coroa de arame farpado sobre tua cabeça, em garras, ratoeira e tenazes no teu coração. Atravessarás o dia fazendo coisas como tirar a poeira de livros antigos e velhos discos, como se não houvesse nada mais importante a fazer. E caminharás devagar pela casa, molhando as plantas e abrindo janelas para que sopre esse vento que deve levar embora memórias e cansaços.
Contarás nos dedos os dias que faltam para que termine o ano, não são muitos, pensarás com alívio. E morbidamente talvez enumeres todas as vezes que a loucura, a morte, a fome, a doença, a violência e o desespero roçaram teus ombros e os de teus amigos. Serão tantas que desistirás de contar. Então fingirás - aplicadamente, fingirás acreditar que no próximo ano tudo será diferente, que as coisas sempre se renovam. Embora saibas que há perdas realmente irreparáveis e que um braço amputado jamais se reconstituirá sozinho. Achando graça, pensarás com inveja na largatixa, regenerando sua própria cauda cortada. Mas no espelho cru, os teus olhos já não acham graça.
Tão longe ficou o tempo, esse, e pensarás, no tempo, naquele, e sentirás uma vontade absurda de tomar atitudes como voltar para a casa de teus avós ou teus pais ou tomar um trem para um lugar desconhecido ou telefonar para um número qualquer (e contar, contar, contar) ou escrever uma carta tão desesperada que alguém se compadeça de ti e corra a te socorrer com chás e bolos, ajeitando as cobertas à tua volta e limpando o suor frio de tua testa.
Já não é tempo de desesperos. Refreias quase seguro as vontades impossíveis. Depois repetes, muitas vezes, como quem masca, ruminas uma frase escrita faz algum tempo. Qualquer coisa assim:
- ... mastiga a ameixa frouxa. Mastiga , mastiga, mastiga: inventa o gosto insípido na boca seca ...


A personagem está sentada numa escrivaninha. A escrivaninha é muito velha, tem madeira lascada, riscada, manchada de muitas tintas. Falta a gaveta de cima. Pelo vão pode-se ver o que há no interior da segunda gaveta: uma garrafa de Pepsi-Cola vazia e um pedaço de sanduíche de queijo ou/e mortadela. Sobre o tampo, um maço de Hollywood pela metade e muito amassado, uma caixa de fósforos e um pires de cafezinho como cinzeiro. A personagem Lê um livro – de onde não consigo ler o título. A personagem usa tênis brancos (foram brancos), calças de brim azul, desbotado e sujo, um suéter amarelo de lã, esgarçado nos cotovelos. A personagem não olha em volta. Em volta, muitos moças & rapazes com pastas, falando alto (pode-se ouvir, nitidamente, a palavra “dialética”), supõe-se que sejam estudantes. Nas paredes vários cartazes. Num deles, pode-se ler claramente “Cultivar as Almas – ciclo de palestras filosóficas”. Em outro “Você na prévia”. E também: “Pela prática da Liberdade”. Por todos esse detalhes, se supõe que o cenário onde está sentada a personagem seja o diretório do centro acadêmico de alguma faculdade (mas de onde estou não consigo ver claramente). Há uma porta grande de vidro, semi aberta. Lá fora, às vezes chove, às vezes faz sol. Secas e molhadas, as pessoas que entram não param nem falam com a personagem. A personagem está vendendo alguma coisa. De onde estou não consigo ter certeza do que se trata. Mas parecem entradas, dessas para o teatro, cinema, música ou coisa assim. Ninguém pára. Todos falam entre si (pode-se ouvir, nitidamente, a expressão “contradição do sistema”), mas ninguém com a personagem. A personagem pára de ler e olha em volta para ver se está sendo observada. Lentamente. Depois introduz rápida o braço no vão da primeira gaveta (disfarçando com o livro) e, no fundo da segunda, apanha o resto do sanduíche (queijo? Mortadela?). Não vê que eu vejo. Então morde.




Caio F. Abreu - Caio 3D - O essencial da década de 80