quarta-feira, 22 de junho de 2011

BREVES MEMÓRIAS DE UM JARDINEIRO CRUEL

Sempre gostei de flores. Até hoje lembro de um jardineiro na nossa casa de Santiago do Boqueirão, bem embaixo da janela de meu quarto, que nas noites de verão enlouquecia o ar com seu perfume intenso, doce e, dizem, um tanto alucinógeno. Mas durante muitos anos, nunca pensei que fosse preciso cuidar das flores. Elas simplesmente estavam ali, como as pedras, as árvores. Só anos depois percebi que não era assim.
Foi em Londres, já por 1973. Homero estava indo trabalhar em Estocolmo e me passou seu trabalho preferido: jardineiro num subúrbio, muito além de Richrnond. A patroa era uma maravilha: Mrs. Kuzmin, velhinha húngara refugiada na Inglaterra durante a Segunda Guerra. Tinha um sotaque fortíssimo, como o de Meryl Streep em A escolha de Sofia, e vivia só com uma filha gorda, solteirona e muito carente. Puxava sempre papo e, enquanto eu mourejava no jardim, ela colocava na janela a caixa de som, quase sempre Mozart. Já Mrs. Kuzmin era severa — dava ordens, fiscalizava enquanto eu cortava a grama (inglesa autêntica!) — mas também humana. Terminado o trabalho, na cozinha limpíssima me servia chá Earl Gray com limão e une larine de leite, mais um daqueles alucinantes cakes ingleses empapuçados de geléia. Vivendo numa squatter-houe sórdida perto de Portobello Road, vezenquando aquela era minha única refeição do dia. Material e também espiritual, pois além de comida e das histórias da guerra que as duas contavam havia as flores. Foi a primeira vez na vida em que pensei seriamente em me tornar jardineiro. Anos atrás, quando ainda era um maníaco depressivo insaciável, Graça perguntou o que realmente eu gostaria de ser na vida. Levei uns dez minutos para responder. Ilhas gregas, iates, amores, apartamento em Paris, tudo isso pareceu nada quando veio a resposta sincera: “Jardineiro”, eu disse. “Um dia eu gostaria de plantar rosas, muitas rosas.” Mas vivendo entre os desfiladeiros de concreto de São Paulo, parecia impossível. Certa vez, dividindo uma casinha perto do Ibirapuera com Grace Giannoukas, tivemos uma estonteante roseira cor-de-rosa, mais alecrim, manjericão, arruda. Foi bom, mas durou pouco.
Pois não é que, confirmando aquele bíblico “pedi e ser-vos- á dado”, agora tenho um jardim? Bem, não exatamente meu, é da casa de meus pais. Também não é nenhum Luxemburgo, mas grande o suficiente para conter uma palmeira coberta de hera, dálias, rododendros, alamandas e outras misteriosas (um dia o vento soprou, espalhando os pacotinhos com o nome dos bulbos). E rosas, claro. Cor-de-rosa, plantadas há tempos por meu pai; uma vermelha batizada de Odete, em homenagem a Odete Lara; outra branca ainda pagã, mas com cara de Lygia (Fagundes TeIles), plantadas por mim. Também penso num cacto a chamar- se Hilda (Hilst)... Mas não pensem vocês que vida de jardineiro é mole. Além de calos nas mãos e unhas pretas de terra, há perigos medonhos rondando: formigas roedoras, gatos noturnos que quebram os talos frágeis e — argh! — caramujos canibais tarados por brotinhos tenros. O japonês da floricultura receitou Lesmol, mas odiei o nome, além de envenenar aterra; alguém sugeriu sal, mas pirei lembrando daquelas histórias bíblicas de salgar a terra para esterilizá-la. Aí descobri: pedrinhas! Você faz um círculo com elas em torno da planta, com as pontas agudas voltadas para cima. O caramujo tenta passar e crau! Crava a pedrinha na barriga. De manhã cedo, com uma pá, tenho me dedicado a recolher cadáveres de caramujos empalados. Jogo no lixo sem piedade. Cruel, mas imagino que ecológico. E tão eficiente que não sei se eles avisam uns aos outros, mas diminuíram muito. Cá entre nós, estou ficando tão sabido nessas artes que ando pensando em substituir o crédito “escritor e jornalista” por “escritor e jardineiro”. Parece chiquérrimo, não?


O Estado de S. Paulo, 11/12/1994
- Pequenas Epifanias 

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