terça-feira, 19 de julho de 2011

NOVAS NOTÍCIAS DE UM JARDIM AO SUL

E o seu jardim, perguntam os leitores, como vai? Vai bem, respondo, embora na minha mente ele seja muito mais, digamos, exuberante que na real. É que jardins são exaustivos feito relações humanas. Tem que cuidar todo dia, regar, podar, arrancar erva daninha, expulsar caramujo do mal, formiga temática, pragas mais diabólicas que o vírus Ebola. Planta malcuidada fenece que nem amizade sem trato.
Mas tenho aprendido coisas. Gladíolos, por exemplo, uma decepção. Florescem só uma vez — palmas lindas, brancas, espirituais — depois viram hastes secas. Petúnias, após o deslumbramento inicial, tanta cor (só não tenho das laranja), começaram a churriar escandalosamente. Desconfiei que estavam sendo sufocadas pelas cravinas. Troquei as cravinas de lugar, e no momento são o grande sucesso do jardim, em todos os tons de amarelo e laranja que se possa imaginar. Mas as petúnias continuam a dar pra trás, sem papo nem adubo, que se há de fazer?
Outro sucesso atual é uma folhagem rajada de verde e vermelho, algumas de verde e branco, que meu pai diz chamar-se tinhorão, mas insiste em chamar de tigrina. As tigrinas são ótimas, bem-dispostas, saudáveis, e parecem muito felizes. Há também as zínias, que me fazem lembrar sempre da Emília do Monteiro Lobato, dizendo que a zínia é uma flor que parece que ainda não encontrou sua forma definitiva, tem sempre uma pétala fora do lugar, alguma coisa torta. As minhas são mínimas e discretíssimas, quase ninguém vê. Mais discretas só as minionze-horas, de vez em quando desaparecem durante dias, depois pintam com uma fugaz e deslumbrante florzinha amarela.
E expectativas: crisântemos em vias de florescer, amores- perfeitos por enquanto um pouco aperreados. E gratificações: as íris brancas, e esguias, em forma de pequenos sinos góticos, com cruzes lilases dentro e seu doce perfume litúrgico, que só perde para o das angélicas. Aliás, tem uma angélica que ia indo muito bem e agora empacou. Falar em empacotamento, depois de meses, Lygia, a roseira branca, pirou tanto que outro dia tomei um banho para Oxalá com três rosas colhidas diretamente no pé; Sônia, a amarela, está com dois botões muy salerosos; Odete, a vermelha, desde o início a mais perua, com duas rosas escancaradas à la García Lorca e vários botões se preparando. Rosa se prepara tanto para abrir, ela já sabe que é rainha, é por isso mesmo?
No momento não é prudente plantar muito. Plantei tanto no verão que agora volta e meia brota alguma folha que simplesmente não sei o que será. E tenho medo de atrolhar a terra por dentro: se houver alguma coisa querendo nascer e não houver espaço? Tem um narciso demoradíssimo que não sei se gorou, atrolhou ou estará ainda se preparando. Andei pensando: já que se trata de narciso, será que um espelho ao lado ajudaria? Mas passam muito bem a hortênsia, crescendo a olhos vistos; as duas azaléias, todo dia com flor nova; os brincos-de-princesa que comecei a tramar em cordões para puxar até a sacada do andar de cima, desde dezembro coberta por uma apoteose de alamandas; a ráfia, uma espécie de palmeira que faz pensar em deserto e Egito; o bravo jasmineiro sempre em luta titânica contra formigas canibais.
Agora, as que estão sempre ótimas são as marias-sem-vergonha, as descaradas. Acho crime matar as crescidas, mas já me atrevo a arrancar mudinhas que brotam por todo canto. Rego pouco, não dou muita prosa, deixo bem claro que estão ali por mera covardia minha, vítima da síndrome da Alice do Woody AlIen. Maria-sem-vergonha, se você não atina, toma conta de tudo. E é isso, acho, o que mais me martiriza e conflitua num jardim: como decidir o que deve ou não viver? Pás e tesoura nas mãos, demiúrgico, o poder cabe a mim. Imaginem só, então, a angústia daquele pobre Deus, em algum lugar, contemplando a nós, viventes...



O Estado de S. Paulo, 16/4/1995
- Pequenas Epifanias 

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