Difícil juntar as coisas, nessa estranha síntese de Janis Joplin e Dalva de Oliveira: um garotão agitado, bonito. Sexualidade gauche, berrando poemas de sabor beat, loucamente temperados por pitadas de Lupicínio Rodrigues, Mick Jagger, Rimbaud, Jim Morrison e muito mais. Como é que pode? Eu ouvindo cada vez mais alto Exagerado ou Só as Mães São Felizes, vizinhos putos, e na minha cabeça rolando todas. Quem seria esse poeta com as letras mais poderosas da atual música brasileira? Quem seria esse roqueiro juvenil e profundo, lírico e maldito, chique e marginal, explodindo as fronteiras do bom-gosto estabelecido, às vezes insuportavelmente lúcido? Eu estava intrigado: à beira da paixão. Como com Angela Ro Ro, Billie Holiday, Lou Reed.
Ele existe. vocês sabem. Chama-se Cazuza, 27 anos de Áries com Sagitário, fogo suavizado pela Lua em Libra. Carioquésimo. De beira de praia, Ipanema. Filho único bem mimado, de pai produtor da Philips. Elis Regina pegava ele no colo. Ele espiava escondido os papos do pai com figuras como Tarso de Castro ou o lendário Roniquito (irmão da Scarlet Moon). Curtia os mais velhos: ele é mais velho que sua geração. Dublava sua coleção de discos de rock subido em cima da mesa, a vassoura fingindo de microfone. Menino exagerado, imitava os graves de Maria Bethânia. Estudou 10 anos num colégio de padres, na quarta série ginasial foi expulso: mau elemento, lógico. O pai prometeu um carro se ele passasse no vestibular. Passou, ganhou o carro e ficou só uma semana na faculdade: Comunicações. Cazuza escrevia uns baratos, queria ser jornalista. Ou fotógrafo, ou qualquer coisa. Mil cursos: medo de encarar a vocação maldita. Ou bendita? Bem, depende.
Um dia não fugiu mais. Começou com uma fase super-hiponga, quando foi o que ele chama de “cantor de fogueira”. Juntava, bicho, um pessoal em Mauá, Porto Seguro, Trancoso, aquelas coisas, em volta de uma fogueirinha. Pintava uma flauta, uma viola, e lá vinha Cazuza com sua voz rouca de HoIlywoods e conhaques desfiando um vastíssimo repertório. Rocks, tangos, blues, boIerões e o que mais rolasse. Certos traumas: “Me barraram no coral do colégio. Fiz teste com a mulher do piano e não passei”. Veio uma peça teatral, verão de 80-81: Paraquedas do Coração, montado no Circo do Arpoador. Cazuza era um pouco ator, e cantava. No elenco linha um moço chamado Léo Jaime, que falou assim: “Ó cara, conheço um grupo de rock lá do Rio Comprindo que tá querendo um vocalista. Vai lá. Cazuza foi. Os caras queriam uma garota cantando, mas o som super-heavy deu certo com Cazuza: era o Barão Vermelho. “E o resto”, ele diz, “ah, o resto é História”. Ou história? Dois LPs, a explosão de Beth Balanço, a paixão confessa de Caetano, Gil, Bruna Lombardi e todos nós. Cazuza agora, você sabe, é solo.
Surpresa: ele adora Clarice Lispector. Tem Água Viva há anos na cabeceira, chegou a fazer uma música que nunca gravou. Paixão por Nelson Rodrigues: “Me comove tanto a piedade que ele tem pelo ser humano”. Piedade, palavra-chave na obra de Cazuza. Que dói, lanha e sangra. Lê mil Jornais por dia, atento ao horror solto por aí na Nova Idade Média. Foi de uma notícia sobre um bando de adolescentes que violava cadáveres num cemitério do interior deMinas que tirou um verso da proibida (e genial) Só As Mães... Barra pesada. Cazuza é proibido. Dark demais? Ou porque fala do real ali da esquina e cá de dentro? Val improviso, necrofilia. E rosas roubadas. Tem uma coisa nova nele crescendo, em direção à outra luz: “Tô me vendo mais social, mais preocupado com o coletivo, saindo daquela coisa reduzida de mesa de bar e dor de corno”. Cazuza é cândido, gentil e abandonado. Tem insônia, fica fazendo fantasias. A mais frequente: “Que tenho uma porção de irmãos e todos dormem no mesmo quarto, em beliches”. Você sente falta de irmãos, Cazuza? Mas você tem tantos, menino. Um beijo.
Caio F. - Revista AROUND, junho de 1985
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