terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A Adelaide Amaral
Sampa, 29 de outubro de 1984.


Levinha do Amaral,

pois eis-me aqui, na segunda-feira perto do meio-dia, procurando papel branco para te escrever, sem achar (de chique a revista só tem o visual — cilada absoluta: salários baixíssimos e usura no material de redação). Fiquei todo abalado com o teu "De braços abertos"* Fiquei com perguntas assim: será que isso que a gente chama de amor se passa sempre fatalmente em dois níveis? O da fantasia, da emoção real, poética — e o da realidade que descamba para a agressividade, para a dureza? Por que, na segunda-feira, eles (nós) não revelam a carência do fim de semana e se dizem coisas duras? Realmente, por que, afinal? Se não seria mais fácil se a verdade pudesse fluir? Um pouco mais além: mas será que a verdade poderia mesmo fluir? Será que verdade e fluência não se opõem, contrapõem? E coisas como: amor existe mesmo? Ou só existe o permanecer de braços abertos, como no sonho de Luisa (esse sonho podia perfeitamente ser meu), pronto(a) a receber alguém que nem sequer chega a tomar forma? E quando alguém, no plano real, toma forma, a gente imediatamente projeta toda aquela emoção presa na garganta do sonho. E fatalmente se fode, porque está tentando adequar/ajustar um arquétipo, uma imagem de toda a nossa infinita carência, nossa assustadora sede, a uma realidadezinha infinitamente inferior.
Eu não sei. Estou te escrevendo querendo dizer uma porção de coisas que não sei se vou conseguir. Não sei se tem sentido dizer que De braços abertos é a tua melhor peça. Mas se tem, digo: é perfeita, é quase inacreditável ver como você consegue ser emocional sem ser babaca, política sem ser panfletária, sensual sem ser grossa, culta sem ser pedante, elegante sem ser fresca. Como você consegue a medida exata da sutileza — como se o teu texto se movimentasse naquela região estreita, delicadíssima, do que a gente poderia chamar de fímbria. Nas fímbrias entre o desespero e a fé, entre o amor e o ódio, a luz e a treva e todos os opostos. É lindo e poderoso. Digo que não sei se tem sentido falar nisso porque acho talvez mais importante falar no que o espetáculo te deixa revolvido por dentro, no que ele provoca, atiça e traz à tona. Dá vontade de amar. De amar de um jeito “certo”, que a gente não tem a menor idéia de qual poderia ser, se é que existe um.
E há o perdão na coisa toda: você não julga ninguém. Mesmo Bernadete ou Mário soam simpáticos, humanos. Há um grande gesto de bondade sua, de compreensão, se derramando sobre todas as personagens. Aí me lembra John Fante, do Pergunte ao pó, que foi o único livro que me fez chorar nos últimos anos. Como a tua peça também me fez. Chorar de compreensão meio estúpida pela perdição humana, pela nossa fragmentação, pelas nossas tentativas freqüentemente tão inábeis, mas tão sinceras também, de “acertar”, de fazer as coisas “do melhor jeito”: Aí volto às fímbrías de que eu falava. Dei um soluço bandeiroso na hora em que ele fala “sabe o que eu faço aos sábados? vejo televisão e como pizza”.
Não sei se consigo te passar tudo que sinto. E vem misturado com a minha vida, com as minhas pequenas coisas dos últimos tempos.
Há quase dois meses, menos, vi a morte — e isso mudou muita coisa em mim. Está mudando. Teria que te contar devagar, com calma, como foi a história toda de ter que vestir o cadáver da mãe morta do Reinaldinho Moraes, quando eu nunca tinha visto aquilo de perto. Eu descobri que a gente morre. Eu sei agora que a gente morre. E achei feio, achei tristésimo, achei o corpo humano tão frágil, tão perecível. Fiquei doente, estou fraco, frágil, choro pelos cantos. Voltei à terapia, estou remexendo coisas fundas, dolorosas, meio perdido, com uns problemas difíceis, materiais, de grana, de saúde, de solidão. E escolhendo não morrer, escolhendo continuar, de uma forma ainda meio cega, tortuosa, não-racional.
Ontem também fazia exatamente um ano que Ana Cristina se jogou pela janela. Eu tinha pensado nela o dia inteiro.
Porque chega uma hora em que você tem que escolher a vida. Eu talvez não saiba bem ainda o que isso significa, mas é claro para mim que a hora dessa escolha é agora, está acontecendo. Então ver De braços abertos foi outra peça que encaixou nesse quebra-cabeças cujo desenho geral mal começo a intuir. Porque ela te puxa para o lado da vida, e que não é um lado facilmente ensolarado, luminoso, leve & solto. Vou falar o óbvio de Eros e Thanatos, mas o impulso para amar, para encontrar e conhecer e mergulhar no outro, é o que nos traz para perto da vida. E é por isso que quando se está de braços abertos, se está dando as costas para a morte. Ou deixando, calmamente, tão calmamente quanto possível, que ela venha a seu tempo — porque fatalmente virá.
O que acontece comigo é que eu tinha andado de braços fechados. Sem perceber. Analisando meus sonhos, ultimamente, isso tem ficado tão claro. E eu não quero mais. Ainda não sei como chegar lá, mas você me ajudou muito ontem à noite. Eu quase não conseguia falar, depois. E nem era preciso.
Acho que você está dando coisas lindas para as pessoas. Lindas com todos os componentes de dificuldades, e dores, e procuras, e tentativas, e perdições. Lindas-fortes, não lindas-fáceis. Sinto uma grande admiração por você e um grande orgulho de poder me considerar seu amigo. Obrigado. Um beijo muito grande e com muito carinho. Seu


Caio F.



*Peça teatral

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