sábado, 14 de maio de 2011

CORUJAS

Para meus pais Zaél e Nair
e meus irmãos José Cláudio, Luiz Felipe, Márcia e Cláudia

Tinham um olhar dentro, de quem olha fixo e sacode a cabeça, acenando como se numa penetração entrassem fundo demais, concordando, refletidas. Olhavam fixo, pupilas perdidas na extensão amarelada das órbitas, e concordavam mudas. A sabedoria humilhante de quem percebe coisas apenas suspeitas pelos outros. Jamais saberíamos das conclusões a que chegavam, mas oblí­quos olhávamos em torno numa desconfiança que só findava com algum gesto ou palavra nem sempre opor­tunos. O fato é que tínhamos medo, ou quem sabe algu­ma espécie de respeito grande, de quem se vê menor frente a outros seres mais fortes e inexplicáveis. Medo por carência de outra palavra para melhor definir o sen­timento escorregadio na gente, de leve escapando para um canto da consciência de onde, ressabiado, espreita­ria. E enveredávamos então pelo caminho do fácil, ten­tando suavizar o que não era suave. Recusando-lhes o mistério, recusávamos o nosso próprio medo e as enca­rávamos rotulando-as sem problema como "irracionais", relegando-as ao mundo bruto a que deviam forçosamen­te pertencer. O mundo de dentro do qual não podiam atrever-se a desafiar-nos com o conhecimento de algo ignorado por nós. Pois orgulhos, não admitiríamos que vissem ou sentissem além de seus limites. Condicionadas a seus corpos atarracados, de penas cinzentas e três gar­ras quase ridículas na agressividade forçada ― condicio­nadas à sua precariedade, elas não poderiam ter mais do que lhe seria permitido por nós, humanos.

Vieram de manhã cedo, a casa adormecida recusan­do preguiçosa a admiti-las em seu cotidiano. Apenas a empregada levantou-se entre resmungos para abrir a porta. Aceitou-as impassível em sua sonolência, dentro da gaiola em que estavam. O homem que as trouxera exi­gira apenas um sabonete em troca. Não sei se chegaram a saber disso ― talvez não, pois quem sabe a troca mes­quinha faria oscilar o orgulho delas, amenizando-lhes a ousadia no encarar-nos. Sobre a mesa, uma encolhida contra a outra, massa informe, cinzenta e tímida, onde ainda não se distinguia o grito amarelo dos olhos, aguar­daram pacientes que o sol subisse e as gentes acordadas viessem cercá-las de espantos e sustos. Meu pai no entan­to não lhes deu atenção. Constatou-as e passou adiante, em direção ao banheiro. Minha mãe sorriu-lhes, tentando a primeira carícia, recusada talvez por inexperiência de afeto. Contudo, não as penetrou fundo, anexando-as ino­fensivas em seu esparramar de bondade sem precauções.
Foram as crianças as primeiras a hesitar, num recuo que seria de ofensa se pertencesse à gente grande. Crian­ças, trocaram assombros frente à estranheza dos bichos nunca antes vistos. Por terem menos tempo de existên­cia eram talvez as mais vulneráveis ao mistério. O viver constante, demorado e desiludido dos outros, acostuma­dos à dureza, não poderia por caminhos diretos render-se à solicitação dos olhos delas. Mas a inexperiência das crianças levava-as ao extremo oposto de desrespeitá-las em sua individualidade, trazendo-as sem cerimônias para seu mundo de brinquedos. Perguntaram o nome dos bichos à empregada atarefada em passar café.
Coruja — foi a resposta seca, desinteressada, como se se tratassem de um saco de açúcar.
Aparentemente satisfeitas, compenetraram-se em cer­cá-las de uma ternura meio brusca. Aquela mesma dispen­sadas às bonecas novas, que em pouco tempo restavam espatifadas em braços e pernas pelo quintal. Essa ternura bruta que destrói por excesso inábil de amor. Restou-me o consolo de ter sido o primeiro a identificá-las como realmente eram. Ou como eu as via, duvidando que a visão dos outros fosse mais correta, profunda ou corajosa.
O sol já alto da manhã as fizera abrir os olhos, investigando o ambiente. Creio que a brancura dos azu­lejos da cozinha as surpreendeu, pois em breve voltaram a encolher-se, alheias. Acostumadas como estavam aos vastos céus e campos percorridos dias inteiros preferiam buscar as coisas perdidas no calor dos corpos uma da outra. Prática, minha mãe informava: eram boas para comer baratas. E conscientes de sua liberdade interrom­pida, elas esperavam pela tarefa que lhes era destinada.

Logo caminhavam pela casa inteira, desvendando segredos. As crianças seguravam-nas, embalando-as como nenéns. Sem esperar, de repente, a gente deparava com o olhar amarelo fixo duma ― perturbando, interrogando, confundindo. A acusação muda fazia com que me investigasse ansioso, buscando erros. E punha-me em dia comigo mesmo, para me apresentar novamente a elas de banho tomado, unhas cortadas, rosto barbeado, cabelo penteado - na ilusão de que a limpeza externa arrancas­se um aceno de aprovação. Mas eu sabia ― embora, obs­tinado, recusasse a convicção até o último minuto ―, sabia que seu olhar ultrapassava roupa, pele, carne, mús­culos e ossos para fixar-se num compartimento remoto, cujo conteúdo eu mesmo desconhecesse. Admitia-as envergonhado, mas hesitava em mostrar-me, criminoso negando o crime até a evidência dos fatos. Observava os olhares desviados dos adultos, e desviava também o meu, cirandando com eles na mesma negação.
As crianças disputavam a posse, é minha, não, é minha, manhê, a Cláudia quer se adonar das corujas, mas elas passavam adiante, sabendo-se para sempre impossuídas, indecifráveis. Disputavam também a pri­mazia de batizá-las, ignorando que o anonimato fazia parte de sua natureza. Nessa ignorância, chamaram-nas Tutuca e Telecoteco. Pisquei um olho para elas, rindo da ingenuidade, cada vez mais e mais negada. Ofélia e Hamlet, sugeriu um leitor óbvio de Shakespeare. Mas recusei-os ainda. Secretamente, reivindicava para mim seu batismo e posse, investigava almanaques em busca do nome que melhor assentasse. Chamá-las de alguma coisa seria dar um passo no caminho de seu conheci­mento, como se sutilmente as fosse amoldando à minha maneira de desejá-las. Finalmente achei. Eram nomes de criaturas estranhas, indecifráveis como elas, já perdidas no tempo, misteriosas até hoje. Rasputin e Cassandra. Calei a descoberta, ocultei o batizado, apropriando-me cada vez mais de sua natureza, embora inconscientemen­te soubesse da inutilidade de tudo. Rasputin era menor, mais ágil, caminhava lento pelo parque, os olhos sempre abertos, inesperadamente alcançando o encosto das cadei­ras num vôo raso. Cassandra procurava os cantos escuros, os olhos constantemente semicerrados, uma perna enco­lhida, em atitude de “rosto-pendido-e-ar-pensativo”.

Passados os primeiros dias, principiaram a entrar na rotina. Vezenquando ainda me surpreendia a encará-las num duelo de mistérios. Eu, ocultando cuidadoso o meu, feroz na defesa, embora fosse sempre o primeiro a des­viar os olhos. Recusei tocá-las. A maciez de seus corpos passava quente, impassível, de mão em mão, quando havia visitas. E só nessas ocasiões elas voltaram a espan­tar. Cumpriam honestamente sua tarefa de devorar bara­tas, mas recusavam qualquer outro alimento. O homem que as trouxera informara a minha mãe de seu orgulho: feridas em liberdade, faziam greve de fome até a morte. Com a iminência de seu suicídio, planejamos soltá-las no campo. Quase podia vê-las erguendo-se de leve num vôo contido, experimentando forças, as asas abrindo-se aos poucos numa subida lenta, fundidas em azul, subin­do, subindo.
As asas cortadas, porém, exigiam tempo para cres­cer novamente. Éramos obrigados a esperar. Desejei co­municá-las sua próxima libertação, mas a ineficiência de gestos e palavras isolou-me num mutismo para elas incompreensível. Éramos definitivamente incomunicá­veis. Eu, gente; elas, bichos. Corujas, mesmo batizadas em segredo. Cassandra e Rasputin. Ofélia e Hamlet. Tutuca e Telecoteco. Qualquer nome não modificaria a sua natureza. Nunca. Corujas para sempre.
Mas a greve de fome persistia. Tão bem cumpriram seu serviço de comer baratas que, em breve, creio, não restava mais nenhuma. Orgulhosas, passeavam seus estômagos vazios pela casa toda, a gente se olhando cul­pado, as mãos desertas de soluções. Não nos restava mais nada a fazer senão esperar. Por sua morte ou sua capitulação. Quem as visse, convictas em seu desfilar faminto, poderia facilmente imaginá-las carregando car­tazes de protesto. Contra quê? Contra quem? perguntá­vamos temerosos da resposta óbvia.

Num começo de manhã ainda sem sol, igual a que as tinha trazido, Rasputin foi encontrado morto. O corpo pequeno e cinzento, já rígido, sobre os mosaicos frios da cozinha. Desviei os olhos sem dar nome ao sentimento que me invadia. Encolhida em seu canto, Cassandra diminuía cada vez mais. Olhos cerrados com força, eu tinha impressão que vezenquando seu corpo oscilava, talo de capim ao vento, quase quebrado. Até que mor­reu também. Digna e solitária, quem sabe virgem. Enterraram-na no fundo do quintal, uns jasmins jogados por cima da cova rasa, feita com as mãos.
Não fui ver a sepultura. Não sei se me assustava o mistério adensado ou para sempre desfeito.


Caio F. - Inventário do ir-remediável

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