sábado, 14 de maio de 2011

FUGA

Eles tinham seis anos de idade e iam fugir juntos. Lento, o menino enfiou o pião no bolso ― sua única posse ― e encaminhou-se para a porta. De dentro chegou a voz da mãe num prenuncio de reclamação, "está quase na hora do jantar, onde é que você vai". Não respondeu. Em silêncio, começou a concretizar o que há dois dias se desenrolava dentro dele. A segurança da coisa construída em imaginação durante horas de quietude emprestava a seus passos uma precisão até então inédita, permitindo-lhe essa audácia em não responder, ignorando eventuais palmadas. O trinco quase machucou a mão no ato de fechar a porta, mas ele já começava a se distanciar das coisas que formavam "o que ficava". E o que ficava era tanto que praticamente não tinha nada além de um pião no bolso e uma idéia na cabeça. O morrer do sol colocava uma cor também de fuga nas casas e nas pessoas que cruzavam numa nostalgia de anoitecer. Em breve as sombras se afirmariam em escuro e ele não estaria mais ali. A idéia poderia quebrá-lo por dentro, porque era duro, de repente, não estar mais num lugar ― mas ele nem se machucava, há tanto já ansiava os movimentos interiores, prevenindo os receios, precavendo-se contra a série de sentimentaloidices que se amontoariam bruscas sobre seu coração de seis anos de vida. E, portanto, estava preparado. Dentro do tempo em que vivera, dois dias era uma longa preparação. Um preparar de esquecimento que se impusera com método, recusando ternuras, comida na boca, cafuné antes de dormir. Estava todo delineado. E fugia.
Caminhava devagar, a coisa remexendo-se com gosto dentro dele. Num esquecimento de que era insípida quase estalava a língua de puro prazer. As mãos nos bolsos, a cabeça baixa ― ah, nunca se sentira tão definitivo. Era seu primeiro crime, e tão longamente premeditado que não havia espanto nem temor. Como um profissional da fuga, ele ia indo pela calçada comprida, rente ao muro. O sol espichava sua sombra para trás, e vezenquando ele se voltava para ver se ela ainda o acompanhava. Ainda. Expressava seu alívio em forma de suspiro, e prosseguia. Permitia-se apenas esse medo ― o de estar sozinho. E aquela sombra imensa achatada contra o cimento não deixava de ser uma segurança, embora disforme.
Pegou uma pedrinha branca e começou a riscar o calçamento. Depois enfiou-a no bolso, numa sabedoria de coisa decidida: poderiam segui-lo através do risquinho fino e irregular. Ainda mais seguro, olhou quase vesgo de satisfação para uma senhora com a bolsa grávida de compras. A mulher encarou-o com desconfiança. Ele parou, o medo se fazendo desafio nos olhos que meio furavam a natureza da mulher. Suspensos no meio da tarde, eles se mediam expectantes. Pensou em correr, depois riu um risinho cínico que aprendera na televisão ― ela não podia saber. Então esperou. Até que a mulher abriu a bolsa e estendeu-lhe dois biscoitos. Balbuciou um agradecimento de espanto com tanta inocência humana e enfiou-os no bolso, junto com a pedrinha branca. A silhueta da mulher morria na esquina quando ele se interrogou numa primeira incompreensão. Saíra de casa apenas com o pião, e agora já tinha dois biscoitos, uma sombra, uma pedrinha branca e um acontecimento. Fugir não era então ir-se despojando de coisas? Não entendeu, mas o poste que marcava longe o lugar do encontro suspendeu a dúvida. Preocupado, encaminhou-se para lá. Não via a menina. Correu para o poste, investigou as pessoas que passavam, e nenhuma tinha jeito-de-menina-que-ia-fugir. Coçou a cabeça num desânimo. Esperar. Acomodou a irritação no meio-fio e tirou as posses do bolso. Começava por um biscoito, depois brincava com o pião, depois o outro biscoito, depois desenhava no chão com a pedrinha branca, depois pensava na coisa acontecida. Detestava a improvisação, por isso ficou um pouco abalado com a ausência da menina e teve que planejar ações em que não havia pensado. Começava a desconfiar seriamente da honestidade do sexo oposto. Acumulou uma série de queixas que abalaram o prestígio da menina, e preparava-se para pensá-las quando o biscoito sobre a calça fez um jeito fascinante, pedindo para ser comido. Havia-se recusado tantas coisas nos últimos dois dias que guardava mesmo um pouco de fome formando um espaço branco no estômago. Rompendo com o planejamento, comeu voraz os dois biscoitos, depois misturou pedaços de unhas aos farelos restantes. Quase saciado, girou o pião de leve no cimento. Um menino que passava olhou fixo, invejando. Lembrou da impontualidade da menina e perguntou, objetivo:
― Quer fugir comigo?
Inexperiente dessas coisas, o outro menino arregalou os olhos:
― Quê?
― Quer fugir comigo?
― Pra onde?
― Não sei ainda. Qualquer lugar.
― Pode ser Vênus?
― Pode.
― E Gothan City?
― Pode.
― E ... (a sua geografia falhava).
― Quer ou não quer?
― Não sei... que é que você me dá?
O menino investigou as posses desfalcadas. Percebeu o brilho de desejo nos olhos do outro:
― O pião. Quer?
O outro fez cara de dúvida:
― Sei, não. Isso presta?
― Quer ou não quer? ("É pegar ou largar" ― dizia o gangster na televisão.)
― Quero.                                                                       
Estendeu a mão. O menino fez um movimento esquivo de dissimulação.
― Agora não. Só depois que a gente chegar lá.
― Lá onde?
― No lugar, ora
― Que lugar?
― O lugar para onde a gente vai fugir.
― Mas você não disse que não sabe onde é?
― Disse.
― Então pode levar anos.
― E daí?
― Daí que eu quero o pião agora.
Desacostumado a argumentar, estendeu o pião. Antes que pudesse fazer qualquer gesto, o outro ia longe, risada dobrando a esquina, o pião roubado, a promessa não cumprida. Todo magoado com a desonestidade do outro, voltou a pensar na menina. Encaminhou-se para a casa dela. Bateu devagar na porta. A mãe da menina espiou pela janela.
― A Lucinha está?
― Não. Foi no aniversário da menina aqui do lado.
Meio tropeçou no inesperado da coisa. Devia ter ficado pálido, porque a mãe da menina-que-ia-fugir dobrou-se para ele, perguntando se estava sentindo alguma coisa. Estava. Mas como desconhecia aquela coisa verde bem clarinho que se quebrava incompleta dentro dele, não teve palavras para explicar. Disse "não, não tenho nada", e foi saindo de cabeça baixa. Já não só duvidava da menina, mas principalmente de si próprio. Parecia-lhe um pouco culpa sua aquele amontoado de desencontros. De dez minutos para cá aconteciam coisas tão incompreensíveis que ele estava quase desistindo. Por uma questão de dignidade, bateu na porta da casa da menina-que-estava-de-aniversário, que apareceu de vestido cor-de-rosa e perguntou se ele tinha trazido presente. Ele desentendeu mais um pouco, mas ainda assim fez voz firme e pediu para falar com a menina-que-ia-fugir-com-ele. Com o maior cinismo do mundo ela nasceu de repente duma nuvem de babadinhos, a cara limpa, o cabelo penteado com uma fita ― ela, que vivia com os fios na boca. E ainda por cima a taça de guaraná e a cocada nas mãos. Nunca a vira tão Lucinha em toda a sua vida.
O menino teve vontade de dar um tiro nela Mas estava tão desarmado que só conseguiu perguntar com voz meio irregular:
― Você não ia fugir comigo?
― Ia ― disse a menina tirando um pedaço da cocada. (Ai, o espaço branco da fome cintilou dentro dele.)
― Esperei você até agora. Por que-que você não foi?
― Por causa dó aniversário, ué.
― E o que-que tem isso?
― Tem que fugir a gente pode todos os dias, mas aniversário é só de vezenquando.
Ele havia selecionado uma porção de adjetivos pejorativos para jogar em cima dela, mas o pretexto era duma lógica tão irrecusável que ele ficou parado uma porção de tempo, sentindo o tudo que preparara lento em dois longos dias de meditação ir-se desfazendo como a cocada na boca da menina.
Ela olhava para ele; ele pensava na frase, pensava, pensava, ai, o espaço branco aumentava dentro dele, uma baita raiva da menina, da mulher que dera os biscoitos, do moleque que fugira com o pião ― vontade de bater neles todos ou, na impossibilidade, de sapatear até ficar roxo e a mãe chamar o médico num susto, mas os barulhos da festa cresciam lá dentro, o sol morrendo dourava ainda mais o guaraná, o espaço branco aumentava até um não suportar mais que o fazia ir cedendo.
Indeciso ainda, virou o pé de leve. Até que deixou de lado o pudor e perguntou:
― Será que ela deixa eu entrar sem presente?




Caio F. - Inventário do ir-remediável

Nenhum comentário:

Postar um comentário