quarta-feira, 1 de junho de 2011

Caio 68


Por Nonato Gurgel
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“...meu Deus, como sou típico, como sou estereótipo da minha
geração”.
Essa assertiva escrita por Caio Fernando Abreu (1948 – 1996) na Carta ao Zezim, de 1979, dialoga com a contracapa da primeira edição do seu livro Pedras de Calcutá, de 1977. Nela, o escritor define a sua como “uma geração violentada, colonizada e drogada a partir de 1964”.

Esse diálogo entre a contracapa do livro de 1977 e a carta de 1979 sugere como a trilogia da violência política, da colonização cultural e do consumo de drogas contribuiu no roteiro existencial da geração do autor. Está presente também, essa trilogia, em grande parte da bibliografia de 15 volumes que ele escreveu, englobando os mais diferentes gêneros e formas estéticas, como o romance, o conto, o teatro, a crônica, a tradução e as cartas (Caio F., Ana C. e Leminski fazem parte da última geração literária que colecionava cartas).

Diagnosticada por Caio já 1964, essa trilogia da violência, da colonização e das drogas potencializou-se ainda mais naquele que é considerado o ano que sacudiu e esboçou o mundo no século XX: 1968. Em 68, Caio F. tem 20 anos. Larga os cursos de Letras e Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e transfere-se para São Paulo, após ser selecionado, em concurso nacional, para integrar a primeira redação da revista Veja.

Dispensado depois da revista — em plena ditadura militar — ele foi perseguido, ainda em 1968, pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), tendo se refugiado no sítio da escritora e amiga Hilda Hilst, na periferia de Campinas (SP). Depois, viajou para Estocolmo, Rio de Janeiro, Paris, Londres... Aquele era um tempo de viagens. Muitas viagens. Como aquelas que fazem, por exemplo, os personagens do conto “Os sobreviventes”, de Morangos Mofados (1982), como veremos adiante.


Segundo Georges Balandier, “o imaginário encontra sua substância nos espaços, mas vai além: projeta-se neles, inscreve-se neles tornando-se inventor de situações construídas”. Na literatura brasileira do final do século XX, Caio F. destaca-se como um autor cuja “substância” histórica inclui, nas suas formas de narrar, um imaginário desejante e vigoroso que, apesar de haver sido herdado de 68, projeta-se e inscreve-se a partir da década de 70.

Em 68 Caio tinha um texto publicado: o conto Príncipe Sapo”, lançado na revista Claudia, de 1966. Iniciava ali a produção de uma obra que privilegia principalmente as formas breves e fragmentadas – o conto, a crônica, a carta. Além dessa predileção pelo texto abreviado, distanciado da oralidade que sedimenta a narrativa clássica, Caio herda do imaginário daquele contexto político e cultural suas formas estéticas e ideológicas, outros modos de visão, outras qualidades do sentir.

O imaginário herdado de 68 produz outras escritas. Trata-se de um imaginário que contém elementos técnicos e maquínicos, com formas construídas pelo cinema, pela tv e pela música popular, por exemplo, dialogando diretamente com a tradição literária. Isso altera as noções de literariedade. Gera novos mitos e paradigmas culturais. Nas décadas anteriores, o imaginário produtor de literatura era habitado basicamente por signos literários; o que leva Eduardo Lourenço a afirmar que o século XIX foi o mais literário de todos os séculos.

Com essa herança histórica das formas artísticas e culturais do imaginário de 68 Caio tece muito do seu roteiro existencial. Produz, com esse imaginário herdado, uma narrativa que leva em conta não apenas o vestuário e os gestos, mas as gírias, os clichês, palavras de ordem, trechos de canções. Muitos dos seus personagens herdaram os hábitos alimentares do universo hippie, seus produtos naturais e um jeito de ler o mundo que nem sempre privilegia os chamados vencedores.

É do manancial de imagens urbanas e sombrias, da mistura de ritmos dos Beatles e dos timbres de Billie Holiday, do diálogo entre os tons literários e esotéricos (mistura de W Whitman e Krisnamurti) e, principalmente, do recorte lingüístico e vocabular concernente às ruas de 68 e às esquinas dos anos 70, que o escritor gaúcho recolhe a matéria para a criação dos seus personagens e a produção do seu discurso.

Com a memória das viagens e das coisas estocadas nos músculos e no olhar, o autor publica na década de 70 os seus quatro primeiros livros: Inventário do Irremediável (1970), Limite branco (1971), O ovo apunhalado (1975) e Pedras de Calcutá (1977). São letras da urgência. Literatura parida do mergulho nas entranhas. Narrativas que tematizam a solidão, o sonho, o fantástico, a evasão urbana e a clausura da vida moderna. Textos que privilegiam os discursos abissais de personagens que transitam à margem da sociedade: ex-hippies, presidiários, loucos, homossexuais, vagabundos, viajantes, prostitutas, militares autoritários, adolescentes sem pai nem país...

O gosto de mofo na boca e o “nó no peito” herdados do contexto político e existencial da década de 60 e das seguintes são estetizados com vigor no livro Morangos Mofados (1982) – primeiro volume a dar uma maior visibilidade ao autor. O texto começa com um conto chamado “Diálogo”. Nele, dois jovens identificados pelas letras A e B dialogam, e a palavra que mais se repete ao longo das duas páginas (repletas de paranóia e escuridão) é “companheiro”. “Os companheiros” é também o título do sexto conto que compõe “O mofo” – a primeira das três partes desse livro (as outras duas são, respectivamente, “Os morangos” e “Morangos mofados”).

Recorrente no contexto sócio-político e estético de 1968, “companheiro” é uma das palavras pronunciadas pela mídia e inscritas pela geração de intelectuais e escritores do Brasil pós 68. Em sintonia com o recorte vocabular daquele contexto, “companheiro” disputa sua primazia com termos, expressões e títulos como: estrangeiros, exilados, sobreviventes, é proibido proibir, a imaginação no poder, “Paris não é uma festa” (Pedras de Calcutá)... Todas essas palavras e clichês são recorrentes nas páginas de Morangos Mofados, atestando a sintonia lingüística e cultural de Caio com o seu tempo. Um tempo, diga-se, os anos 80, que ele leu assim:
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“Então, para nos distrairmos, há o pós. Pós-punk, pós-new-wave,
pós-moderno, pós-tudo, pós-pós. ...Ninguém falou ainda no pré.
 Pré-qualquer-coisa. Anos 80 como o pré cara a cara com a nossa
 perdição de micróbios doentes na crosta frágil de um planetinha
insignificante? Anda, sim, tudo muito triste.”
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Esse discurso de tonalidade irônica e confessional é alternado por uma dicção meio chula, às vezes cáustica, às vezes dramática, onde gírias e palavrões convivem harmoniosamente com títulos de Chopin e citações de Clarice Lispector. Clarice é, aliás, a grande influência literária de Caio F: “...é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando”, diz ele na mesma Carta ao Zezim. Como Clarice, o autor filia-se a uma linhagem literária onde a repercussão dos fatos e as possibilidades epifãnicas da linguagem dizem geralmente muito mais que os próprios fatos da narrativa.

Esse discurso de dicção alternativa, de tons aflitos e às vezes violentos estetiza, ao contrário do que acontece neste início de milênio, o comportamento como elemento crítico. Diz também do horror vivificado por uma geração que questionou as heranças antigas, e atualiza as formas de solidariedade e participação que 68 nos legou, quais sejam: o apreço pelo discurso das “minorias”, como negros, os gays, as mulheres, os sem terra e audição para os defensores das causas ecológicas, dentre outros.

Esse discurso alia a atitude cotidiana e existencial ao gesto político, seja esse gesto oriundo dos jovens alternativos do desbunde ou dos companheiros da luta armada dos anos 70. O que Caio denuncia em ambos os segmentos – seja no desbunde e/ou na luta armada – é o automatismo comportamental, a falta de engajamento nas micro-políticas do cotidiano e o vazio de sua geração.

Voltemos ao conto “Os Sobreviventes”, de Morangos Mofados. Nesse texto de 1982, a voz narradora é uma militante consciente. Ela comparece a atos públicos e picha muros contra usinas nucleares. Mas o seu discurso parece denotar a falta de roteiros de toda uma geração. Ouçamos a voz de quem sobreviveu: “Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora o que faço?” (p. 15)

O nó no peito, a falta de jeito, a ausência de senhas sobre o que fazer são imagens também recorrentes nos autores que vivificaram e /ou herdaram, no Brasil, essa imagética dos nós por desatar, da falta do que dizer, do nada que restou após as perdas das utopias e seus desdobramentos políticos e culturais. Atesta isso o verso curto e preciso de outro autor também sintonizado com os roteiros de 68, Paulo Leminski, que em seus Caprichos & Relaxos (1983) confessa: “Nadei nadei não dei em nada”.

Quem também escancara a marca desse discurso da perda e do desencanto oriundos em grande parte da quebra das utopias e do fim dos projetos grupais, é a poeta Ana Cristina Cesar, em A teus pés (1982). Ao reler a poeta norte americana Elizabeth Bishop, em sua temporada brasileira, Ana dialoga com o seu poema “Uma arte”, do livro Geografia III (1976), e diz:
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Do alto da serra de Petrópolis,
com um chapéu de ponta e um regador,
Elizabeth reconfirmava, “Perder
é mais fácil que se pensa”.
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Caio F., Leminski e Ana C. são autores em permanentes trânsitos por espaços de buscas e roteiros de perdas. Suas narrativas são repletas de narradores em trânsito, de paisagens em movimento. Suas “letras” traduzem a subjetividade aflita e algumas das perdas dos “sobreviventes” de 68.

Em Caio a tradução dessa aflição e a inscrição dessas perdas são mediadas pelo desejo de encontrar, em meio a pedras e concreto armado, ao redor de tanto mofo, musgo e sacos de lixo sobre o asfalto, alguma coisa luzidia, nacos de luminosidade. Seus personagens decidem plantar morangos em pleno edifício metropolitano. Caio acredita em pequenas epifanias. Por isso cria outras categorias de ver.


A partir do arquivo de formas herdadas daquele imaginário de 68 e das décadas seguintes, Caio F. tece uma narrativa centrada na ação do olhar. Para a tessitura dessa narrativa que dialoga com o cinema e outras artes, o autor elege outras categorias do olhar. As leituras dos contos, das crônicas e cartas sugerem que três elementos díspares dialogam entre si, engendrando esta narrativa do olhar invisível. São eles: a melancolia lusa, a sensualidade afro-tropical e algumas gramas da dramaticidade espanhola, seus “vendavais de ciúmes e impulsos homicidas”.

A estética do olhar invisível inclui o desvio, o viés. Daí a aparição de tantos narradores que olham e contemplam através de persianas, por trás das vidraças, dentro de vagões, como acontece em algumas crônicas de Pequenas Epifanias (1996). Nestes textos, deparamos com narradores que vislumbram o outro pelo buraco da fechadura. Em Caio, este olhar para o outro e para as coisas instaura a narrativa do olhar invisível, sem interação. Um olhar que olha, mas nem sempre se deixa ver. Vejamos:

“só era visível quando o olho ficava tão inundado de luz que enxergava esse invisível no
meio do tocável”. (“Sargento Garcia” in Morangos Mofados, p).

Na crônica “Pálpebras de neblinas”, a visão da prostituta que chora em plena rua Augusta, também não possibilita qualquer interação óptica: “Eu vi. Ela não me viu. Não via ninguém, acho. Tão voltada para sua própria dor que estava, também, meio cega. Via para dentro: charco, arame farpado, grades. Ninguém parou.” (p. 77) No conto “uma estória de borboletas”, de Pedras de Calcutá, essa falta de interação é estetizada da seguinte forma extrema: “... quando percebi, estava olhando para as pessoas como se soubesse alguma coisa delas que nem elas mesmas sabiam. Ou então como se as transpassasse...”.

Sargentos, prostitutas, detentos, estranhos estrangeiros... Outros narradores trocam de óculos e de cidade e olham a fenda imposta pela fala; tocam a brecha onde, por vezes, o real revela sua face menos previsível e solitária: “Andar e olhar. Sem pensar, só olhar: caras, fachadas, vitrines, automóveis, nuvens, anjos bandidos, fadas piradas, descargas de monóxido de carbono”. A narrativa do olhar invisível remove o mofo e tem fé na paisagem.
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Bibliografia
ABREU, Caio Fernando. Pedras de Calcutá. São Paulo: Alfa-Omega, 1977.
____ Morangos Mofados. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.
____ Morangos Mofados. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
____ Estranhos Estrangeiros. São Paulo: Cia das Letras, 1996.
____ Cartas. Moriconi, Ítalo (Org.). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
____ Pequenas Epifanias. Rio de Janeiro: Agir, 2006.
BALANDIER, Georges. “O imaginário na modernidade” in O Contorno. Poder e modernidade.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
GURGEL, Nonato. “A crônica epifânica de Caio Fernando Abreu...” in Jornal Tribuna do Norte.
Natal, 1998.

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Nonato Gurgel (professor da UFRRJ)
Trabalho apresentado num evento sobre 68 na Ufrj.

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