terça-feira, 2 de agosto de 2011

Conhecendo o paraíso


GAY POWER

Eu acho muito discutível essa coisa de luta gay. Todo mundo é parcialmente bissexual. Quando a gente começa a gritar aos quatro ventos as diferenças, você corre o risco de reforçar a discriminação. Se deve lutar, sim, por todos os direitos: de negros, de judeus, de classes menos favorecidas economicamente.  Não acho a luta gay mais importante do que a luta por melhor salários dos garis da Prefeitura, por exemplo. A política disso no Brasil é ambígua e complexa porque o Brasil é ambíguo e complexo sexualmente. A sexualidade aqui é totalmente indefinida.

Então, vamos discutir, vamos trazer isso à tona, mas com cuidado, para não cair naquilo do festival de filmes lésbicos em Paris que era proibido para homens. Também não gosto dessa história de cultura voltada para gays. É capitalista, uma coisa meio Xuxa, tipo vamos vender a botinha, a camisetinha, a calcinha e vender, vender, vender. Não se tem de compartimentalizar as coisas. Fiquei, ano passado, cerca de dois meses emAmsterdam e o prefeito de lá quer transformar a cidade na capital gay da Europa. Então é assim, um paraíso gay, muito agradável e tal, tem a discoteca dos sado-masos, dos gordinhos, dos negros, o bar das bichas magras, das lésbicas que se travestem de homens, das lésbicas que usam salto alto. Eu não gosto disso. Cai no folclore e na separação. São mini-guetos dentro de médios-guetos dentro de macro-guetos. Nós devemos caminhar é para a união de tudo. Se não, é muito esquizofrênico. Um livro escrito por um autor gay, editado por uma editora gay, distribuído por um distribuidor gay vai ser lido apenas por gays. Eu acho maravilhosamente útil um filme como Priscilla ou Filadélfia que pode não ser um grande filme, mas humaniza as pessoas e o subtexto é: olha, somos todos iguais! Cada ser humano é um universo com suas variações. Sou partidário da teoria do caos. Não vamos tentar ordenar e disciplinar o mistério. E a condição humana é basicamente o mistério.


HOMOSSEXUALIDADE

Eu nunca me senti homossexual, até porque eu não era exclusivamente homossexual. Tive muitas namoradas e tal. Mas isso é uma coisa que nunca me preocupou. Nunca me senti diminuído, nunca me senti agredido, nunca tive necessidade nem vontade de empunhar bandeira nenhuma. Claro que, quando há alguma discriminação, eu grito e acho justo gritar. Mas jamais encaminharia meus livros ou meu trabalho para uma coisa assim tão dirigida. Eu estava revisando um conto curtinho de Morangos Mofados que se chama Além do Ponto. É sobre um sujeito sem nome, caminhando na chuva, com uma garrafa de conhaque embaixo do braço à procura de um outro sujeito abstrato que está esperando por ele em algum lugar. E ele chega na casa do outro, começa a bater e a porta não abre. Essa história, na época em que o livro foi lançado, foi lida como uma história homossexual. Não é. Ela é a procura de Deus. O homem atrás da porta é como Godot, de Samuel Beckett. Foi uma leitura muito chinfrim. E o Brasil está muito assim, está muito Barbie. É uma ansiedade pelo plástico e uma avidez pela intimidade alheia! Eu tenho horror dessas revistas que entrevistam peruas e perus. Há um esvaziamento interior muito grande nas pessoas, elas estão ávidas tanto para ouvir quanto para falar sobre isso. A mim, nada que é humano me espanta e justamente por nada ser espantoso e vergonhoso a gente pode falar a respeito, mas a palavra chave é dignidade. Eu li muita fábula quando era criança, muito Esopo e La Fontaine – ética é bom e a gente gosta.


AIDS

Hoje tenho grande urgência de viver. Cazuza, Derek Jarman, Bill T. Jones. Todos trabalharam loucamente. Não há tempo para perder com gente chata, coisas chatas, ficar em fila de supermercado. Não posso perder tempo. Ainda nem li A Divina Comédia! E isso é muito saudável, se souber jogar com isso dentro da cabeça. O vírus não significa uma condenação à morte. Tenho amigos que estão com ele há 11 anos. Vide Betinho, que é maravilhoso, movido à vida e fé muito mais que AZT. A gente precisa falar muito sobre o vírus precisa dessacralizá-lo. Ele é uma coisa idiota. Precisa falar com ele de frente. Eu vi pessoas, aqui no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, que chegam do interior, mal, magrinhas, fracas, de ônibus, porque na cidade delas ninguém pode saber que estão doentes. Não ter vergonha nenhuma nisso. Que que é isso? A Condição humana é muito inocente.


ATITUDES


Até agora, não sofri nenhuma rejeição. Mas há editores ligando e perguntando: ‘você não quer editar qualquer coisa’? Não! Eu não escrevo qualquer coisa! Isto é Brasil-Barbie, é querer ganhar dinheiro em cima. Ao mesmo tempo acho que temos que falar. Olha o que fizeram com a Sandra Bréa: ela chamou a imprensa, deu coletiva. Achei o máximo, ...a estrela querendo o brilho, mesmo o brilho pelo avesso. Falou que tinha sido em acidente de carro. A mídia toda foi investigar, não tinha havido a transfusão e a moral da história era a seguinte: ela era uma piranha, ela teve o que merecia, bem feito. Isso é horrível, nojento. Nós não queremos piedade. Nós queremos que tenha AZT na Secretaria da Saúde e não tem. Eu já fui lá três vezes e não tem. Como conheço a Scarlet Moon e a Lucinha Araújo, no Rio, liguei pra lá e elas me mandaram. Mas e se eu não tenho estes contatos, se não conheço ninguém como a maioria? As pessoas morrem.Solidariedade, amor e tal é muito bonito, mas a gente quer remédio, que as coisas funcionem.


HIPOCRISIAS

Eu já fui tão marginalizado. Mas, de repente, virei uma celebridade só porque sousoropositivo. Tem uma avidez da mídia em relação a isso, um subtexto que diz: “ah, vamos dar força pra essa bicha antes que ela morra”. Às vezes me sinto como um busto pré-póstumo. Claro que tem um lado carinhoso, de respeito, mas tem um lado de preconceito oportunista e sacana. Numa emissora de TV, há quatro anos, tive um entrevero no ar com a Raquel de Queirós, aquela latifundiária improdutiva e extremamente reacionária – num programa semanal em que eu era sempre um dos convidados (nota: no vídeo abaixo, a partir de 02:55). Depois disso, nunca mais me chamaram para nada, a não ser há algumas semanas. E era o mesmo entrevistador, a quem eu lembrei o fato e que, durante uma hora, não me olhou nos olhos. Mas uma das coisas boas do vírus é que fica assim... um grande caguei. Não tenho nada a perder, a única coisa que posso perder é a vida. Então, quero mais é dizer o que penso, o que realmente sinto, coisas que são verdadeiras pra mim e que podem ser úteis aos outros. Porque eu acho que sou uma pessoa legal, como costuma dizer a Gal Costa. Eu vivi uma porção de coisas, posso dizer coisas boas e más também. Como falava Mae West, ‘quando sou boa, sou ótima, mas quando sou má, sou melhor ainda’.


OTIMISMO

Somos todos Laikas, um país de Laikas, aquela cachorrinha que os russos mandaram pro espaço nos anos 50 e não conseguiram trazer de volta. Eu sempre imagino que ela caiu num buraco negro e foi dar num planeta cheio de Laikas. A condição humana é Laika, a gente urrando pro infinito. Hoje, estou muito otimista. Sempre tive muita preguiça, tédio de viver. A gente não se dá conta de que a vida é um dom, que a saúde é uma benção. As pessoas estão muito distraídas disso. Acordar de manhã e lavar o rosto é divino. Então, te dá um estado que eu chamo de budista espontâneo, um estado de adoração e agradecimento sem messianismo. Uma pessoa que sabia disso espontaneamente era o Tom Jobim, que era um Zen natural. Alguns, como eu, têm que ficar com a cabeça na guilhotina até o momento em que alguém revoga a ordem e diz: ‘pode deixar por mais um tempo’.

                              

 Rev. Sui Generis. Nº 1. Janeiro 1995, por Maristela Barrios

Um comentário:

  1. Que lindo, nunca tinha visto essa entrevista com o Caio. Adorei a idéia do blog, querida, muita paz e que seja doce! :)

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