quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Caio, amado amigo

'Não preciso falar do escritor tocado de genialidade, justamente celebrado nestes dez anos de sua morte. Falo do amado amigo, quase um irmão mais novo. Era estranha aquela amizade nossa... ou deverei dizer "é", no presente?

Caio Fernando Abreu nasceu um dia depois de mim, exatamente dez anos mais tarde. Eu era casada com um ilustre professor universitário e pesquisador, tranqüila mãe de três filhos; Caio, grande alma inquieta, era um andarilho misto de príncipe e alternativo. Ouvi falar dele muitas vezes antes de o conhecer. Guilhermino Cesar, crítico severo e erudito, disse-me dele: "Escritor não nasce pronto, mas Caio Fernando é uma exceção : aos 20 anos produz um texto em que nada há para melhorar".

Conheci Caio em minha casa, em Porto Alegre, onde me visitou com meu amigo Luciano Alabarse, diretor de teatro, que havia pedido: "Quero levar seu romance Reunião de Família ao palco, e só há uma pessoa capaz de adaptar esse livro: Caio Fernando".

Alguma coisa em pessoas tão incongruentes como Caio e eu transcendeu todas as diferenças, e imediatamente nos tratamos como irmãos. Demos muitas risadas, falamos coisas loucas e profundas e engraçadas, nos comovemos às lágrimas, e naturalmente dei minha autorização. A adaptação de Caio foi magnífica, a peça, montada, foi um sucesso, e a partir dali acho que passei a entender melhor meus personagens, com seus labirintos e dramas existenciais, agora vistos em carne e osso.

Nossa amizade estava decretada. Ficamos em contato. Carta, telefonema ou raro encontro eram simples continuação de um diálogo nunca interrompido. De São Paulo ou Amsterdã, ele me escrevia, com assuduidade ou em longos intervalos. Algumas vezes relatava suas lutas e dificuldades, momentos bons ou pobreza e solidão. Em outras ocasiões, com um pouco daquele seu humor tão peculiar, escrevia: "Ando casto e em paz. Rego minhas plantas, escrevo cartas, faço poemas. Pareço uma recatada velha dama inglesa".
De mim, dizia com muita graça: "A Lya, com aqueles cândidos olhos azuis e jeito de mâezona, não tem idéia do que escreve, tanto mistério e dor. Aquilo deve ser tudo psicografado".

Quando ele adoeceu, li seu artigo revelando sua condição, num dos mais admiráveis testemunhos de humanidade e coragem que conheci neste mundo hipócrita. Perto do seu fim, tivemos duas experiências de amizade destinada. Numa delas, jantávamos juntos, num restaurante discreto perto da casa dele. Caio de repente segurou minha mão por algum tempo, depois disse: "Eu sempre vivi como quem quer se matar. Agora que sei que vou morrer... como eu amo a vida!" Nada melodramático, nenhuma autopiedade, apenas dolorida constatação.

Quando ele já estava definitivamente no hospital, quase não recebendo visitas, eu tinha notícias constantes através de amigos ainda mais chegados, como Graça Medeiros. Um dia ele quis me falar, então telefonei. A voz de Caio, inconfundível, era quase a mesma. Falamos duas, três banalidades, e então ele perguntou, direto: "Lya, o que você acha que vai acontecer comigo quando eu me libertar deste corpo?"

Seria indigno dizer algo falsamente consolador a alguém como Caio: nem ele nem nossa amizade nem o momento mereciam isso. Respondi, na maior simplicidade, aquilo em que acredito: "Acho que, livre desse corpo, você vai ser pura intuição, e enxergar num deslumbramento tudo isso que passamos a vida procurando entender, e sobre o que escrevemos tanto".
Ele fez um silêncio breve e voltou à carga, num misto de angústia e carinhosa provocação: "E se não for assim?"

Assumi o mesmo tom: "Ah, meu querido, se não for assim, nós dois vamos virar uns diabos bem perversos, e vir fazer toda sorte de malandragem neste mundo!"

Sua risada soou no fio do telefone, linda, clara, forte como nos tempos de saúde. Foi nosso último contato: ele morreu dias depois.

Mas está comigo, como outros seres amados que se foram sem realmente partir.


Lya Luft - 8 de março, 2006 - Revista Veja Edição 1946

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