segunda-feira, 12 de setembro de 2011

KARTA KAÓTICA

Nei Duclós, jornalista, com quem Caio se correspondeu durante a década de 70 revelou algumas cartas inéditas em seu blog, dentre as quais se encontra essa "karta kaótica", assim entitulada por Caio. O blog do Nei está no final, passem por lá.
A carta:


Nei:


Salve: hoje to tomando chá com limão e ouvindo Belchior: “eu sou apenas um rapaz latinoamericano/ sem dinheiro no banco/ sem parentes importantes/e vindo do interior”. Eu também. Grilei com a crítica e as cartas-pixativas de Escrita – ainda não chegou aqui – sei lá, to numa fase de análise em que fico me achando um lixo (apaga o cigarro no peito), outras putas-velhas-de-divã dizem que é-assim-mesmo and I hope so, daí fica pintando esse tipo de coisa e só piora, não é? Sabe que desde janeiro não escrevo NADA? Foi em janeiro que começou essa badalação em torno do Ovo, que me fez muito mal, tanto a positivo como a negativa – já não tenho naturalidade para escrever. Além disso inútil. Nair, minha mãe, hoje veio de novo com o velho papo: na sua ronda costumeira por casas espíritas, umbandistas e o que pinta, sempre dizem que “uma mulher fez um trabalho para mim num cemitério”, many years ago – é uma coisa pra me enlouquecer, e que só não enlouqueci porque tenho muita força, mas o tal trabalho bodeia num outro sentido, causando depressões, autodepreciações. O psiquiatra hoje de manhã disse que tenho como uma espécie de “culpa original”: acho que não mereço nada de bom que me acontece, daí nos momentos em que devia estar meio contente é quando estou mais bodiado (vide Laing, “O Eu Dividido”, falso-self & outros bichos). Eu não sei. Sei que tem um negócio errado.

Tua carta, lida quatro vezes, me deu uma vontade absurda de estar em SP. Absurda porque tive a oportunidade de ficar aí em fevereiro e não quis. Você me pergunta pela minha paixão...Saco, acho que aqui to sentindo falta de estímulos-externos: barras mui violentas, batalha por grana, por casa, por emprego, essas coisas. Nas vezes em que estive mais pressionado de fora para dentro foi quando mais produzi. Estou cansado da meia boca daqui: sentimentos mornos – quanto tempo faz que não me apaixono? quanto tempo faz que não sinto ódio? quanto tempo faz que não tenho vontade de morrer? É como um filme de Antonioni fase- antiga, longas tomadas, lentíssimas, mui sacais - & nada acontecendo. Quanto tempo faz não beijo alguém na boca? Many time, my friend.
Saí a catar o Dudu San Martin ontem – não teve espetáculo, chovia pra caralho (“o maior caldo”, como dizem no IAPI) – daí li os poemas que ele mandou pro livro-coletivo-do-Valdir (que me mandou o livro, tudo bem, escrevi a ele). Wow! Ou uáu, para ser mais nacionalista. São muito fortes? vivos? bons? são fortes-vivos-bons, mas também são mais, têm um FERVOR que fazia tempo eu não sentia em nada escrito. Acho que é o melhor dele que li até agora, me fez muito mal, me baixou ainda mais a moral, porque são extremamente pessimistas (mas, nessa altura do campeonato, pode-se ser otimista?). Depois bebemos cachaça e ouvimos Mercedes Sosa. Levitan- encontrei no teatro, outro dia, ele fez a música duma peça infantil que está em cartaz junto com a nossa, tava de calça listrada e, não sei, meio “controlado” (não sei se é bem isso), como sempre.

II - INTERVALO: GAGOS E VESGOS


Parei quase umas 24h, nesse tempo (será que no espaço também?) que separa a última frase coube: uma apresentação do “Sarau” prumas 20 pessoas (amargo, não?), uma tarde de autógrafos do Gabriel de Britto Velho onde a média de idade das pessoas devia ser – sem exagero – uns 60 anos (mas ele é ótimo: gago: sempre gostei muito de gagos, de vesgos também, têm something else); quebra-pau nos camarins (ainda vou escrever uma peça que se passe naquele espaço entre o camarim e o palco).

Incrível, tá mesmo difícil, meu amigo - chegou Caparelli, trovamos, trovamos, aí quando ele ia saindo chegou um cara da UNISINOS com um gravador, querendo me entrevistar. Fui entrevistado. Burríssimo, o moço, mas excelente visual. Ficou me olhando dum jeito esquisito quando perguntei: “Sabe que você poderia estar faturando horrores como mocinho de bangue-bangue italiano?”

III – ESQUINA MALDITA

Mas, como eu ia dizendo – depois de mais de um mês, ontem, fui à Esquina Maldita procurar Emílio Chagas. Bem foi inevitável, tomamos um pileque épico. Hoje acordei ruim, gosto de cabo-de-guarda-chuva na boca & culpa: ando bebendo muito. Horrível, não é? Eu acho, também, mas é difícil evitar, principalmente agora que começou a esfriar, de noite dá aquela necessidade de coisas quentes você sai por las calles, aí vêm as brahmas, os vinhos, os conhaques, as cachaças. E é engraçado, quando a gente tá bebendo com alguém chega num ponto em que parece que vai acontecer alguma coisa (ninguém sabe exatamente o que), e que para essa alguma-coisa acontecer mesmo é preciso beber um pouco mais. Daí você pede – e então a coisa começa a se decompor. Nada acontece, o porre começa a pintar & a mosca pousa na sopa fria.

Nei, estou ficando cínico e sem esperanças. Essa é uma fase grave. Você não pode me ajudar. Pode-se ficar cínico numa boa? Já não consigo acreditar muito mais nessa “numa boa”. Apaga o cigarro no peito.
Tenho transado com o Henrique do Valle. Ele é incrível, incrível memso, , mas numa ruim. Não é exagero, NUNCA vi ninguém mais drogado, não consegue ficar em pé, quem o ampara é a namorada, que se chama – juro – Misericórdia. Tem marcas de picadas nas VEIAS DOS TORNOZELOS. Veja esses poemas que ele me trouxe: “ninguém acreditou/ quando eu falei dos anjos/ que moram nas estrelas // então eu falei da crise do petróleo/ do preço do dólar/ e falei mal dos outros //nas estrelas/ os anjos morriam de rir”. Ou esta, baudelairiana: “escuta minha prece, Satan/ já que o lótus não nasceu/ deixa eu beber teu vinho/ com os bodes da floresta// já que a vida não é nada/ sem teu sopro// só tu devolves paz/ só tu dás alegria// só tu entregas prazer// enchendo a terra com teu orvalho”, Ele trouxe as respostas de um questionário para a “Escrita”, mais uma pilha de poemas. Alguns vão junto com a matéria mas os outros eu não sei o que fazer. Tem a “Inéditos”, de Belo Horiozonte. Ele é muito muito muito bom. E dói olhar para ele, porque está se matando e sabe disso.

V - CUCA MEIA-BOCA

Estou meio tonto, de ressaca. Ontem vi a crítica da Veja sobre “O Ovo” – aprovado, não é? Não fiquei contente, não me pergunte porque (a tal “culpa original”?). Depois vi meu conto na Ficção, aí fiquei contente. Queria que você lesse, é uma coisa muito louca.

Chega o Correio com um livro de Minas (meu deus, como os mineiros escrevem) – “O Globo da Morte", de Hugo Almeida Souza, um pra mim outro pra Jane (que manda um beijo), abro ao acaso: “Faz assim, cara: diga que tá legal, muito bonito, colorido, sabe como? , (suas mãos mexiam, o cabelo no olho), que o anúncio dá vontade na menina de comprar a porra aí, entende?”. Quem mandou foi o Luiz Fernando Emediato, que me dá um click! –esse-cara-é-bom. Dudu quer ir para Minas, eu quero conhecer Lucienne Samôr, também quero ir pra Minas, Minas não existe mais? Rosane-Luísa internou-se na ala para indigentes do São Pedro, a psiquiatra descobriu e recambiou-a para a Melanie Klain. Procurem, procurem.
Nei, houve um tempo em que a loucura era coisa tão de poucos,lembro dos loucos de rua de Sabntiago/Itaqui, e gente assim mais fina só tinha uma mulher , Dona Benvinda (!), mãe dum amigo meu, Fernando, que tinha medo de formiga e quase 20 anos depois econtrei no El Mourisco, desmunheecando muito – Benvinda enlouquecia periodicamente e era trazido pro São Pedro. Agora todo mundo enlouquece a toda hora, já estive louco, mas nunca numa clínica, o que é uma desfaçatez da minha parte,às vezes até entro numa que a minha cuca é demais meia-boca, já que nunca mereceu sequer uma clínica. Rosane, eu não tive coragem de amar Rosane como ela me pediu que eu a amasse (sem pedir, entende?)

Nei, os amigos estão enlouquecendo, alguns, outros indo embora, outros se trancando em casa, outros ainda bebendo muito, não interessa falar do meu medo, mas ele exste e eu não sei se o nosso grito adianta alguma coisa contra tudo isso – adianta? Gritarei/gritaremos sempre, mas as coisas mudarão? Esta é uma karta kaótica. Caparelli diz que todo verbo no futuro é imbecil. Houve um tempo em que pensei que tinha asas, houve um tempo em que pensei que comigo seria diferente. Tenho na memória imagens & imagens de solteirões de bombachas tomando mate nos degraus ao sol, no inverno (sempre agosto), eu não sei porque isso me ocorre agora, já caiu a primeira geada e as bergamotas estão muito doces. É isso aí. Ou não. Amanhã continuo.


Esclarecimentos de Nei Duclós: RETORNO - 1. Alguns verbos chamam a atenção, como “bodiar”, gíria para algo baixo astral e que já caiu em desuso (acho eu). “Transar” tem mais de um significado, pois podia, como é o caso aqui, se referir a um encontro recorrente com algum amigo ou pessoa conhecida, um mergulho na amizade, uma conversa que toma tempo etc. E “trovar” é coisa de gaúcho, é conversar muito, mudando assim o sentido original, de declamar versos de improviso numa roda de galpão.2. Pessoas queridas e amigos meus são citados, como Claudio Levitan, Emilio Chagas, Eduardo San Martin e Sergio Caparelli. Publico como Caio se referiu a eles naquela época distante. Minha intenção aqui é trazer Caio na íntegra e ele era sempre carinhoso, mesmo quando deixava transparecer alguma crítica. 3. Citações: "Apaga o cigarro no peito" é um verso de Gabriel Britto Velho, que o Caio gostava muito de citar; e há o "procurem procurem" drummondiano; ambos são inseridos por Caio nesta sua brilhante karta kaótica, focada principalmente nos escritores.


26/05 (1976)

Dia cinza, frio, tão úmido que os papéis em cima da mesa amoleceram um pouco. Ontem fui ver “Um dia de cão” e gostei muitíssimo. É uma loucura total, incrível como o diretor consegue extrair humor daquela situação. Ri muito. E amei Al Pacino.

Você conhece Verinha-do-Proletariado? É minha amiga mais recente, estamos fazendo juntos uma matéria sobre psiquiatria para o “Movimento”. Ela trabalhou um tempo na Folhinha, é quase loira, tem um olho claro – e tão gozada, fuma horrores (Continental), usa uns sapatões mui masculinos, roupa amassada, desleixada, fala uns 10 palavrões por minuto – e mesmo assim não convence muito como marginal, você entende?
Minha gripe vai baixando aos poucos. Passei dois dias de cama, lendo coisas – ruins, à exceção de um conto da Ficção chamado “O Analista Marciano”. Chegou Escrita, li a crítica (é meio heckeriana, sim; fiquei me perguntando se, já que os caras apontam aquelas coisas no livro, não será verdade? pelo menos em parte...) e as cartas, que me divertiram muito. “Menino amuado” – amei!!! Puxa, aos 27 anos alguém me chamar de “menino” acho realmente maravilhoso. Rita Lee e Fernando Pessoa? Platão e Monteiro Lobato? Que loucura, não é? Sabe que minha cuca é uma colagem? Nunca fiz teste de QI, será que é realmente muito baixo? Ontem escrevi um continho – escondido, como quem comete um pecado.

Tenho um amigo novo chamado Rafael Baião, não é um nome perfeito? Elementos angelicais – israelitas e magrinhos... ”e que ficou desnorteado – como é comum no seu tempo/ e que ficou desapontado – como é comum no seu tempo/ e que ficou apaixonado e violento – como como você”. Rafael Baião escreve. Quem não escreve?

Junho vem chegando, já começou a gear – as laranjas e bergamotas estão um mel – agora, meu deus, será que conseguirei ultrapassar este agosto? O do ano passado foi fatalíssimo, lá pelo dia 10 eu achava que não ia agüentar mais – e agüentei ainda mais 20 dias. Não recebi nenhuma condecoração. Na Suécia quase 5% da população costuma se suicidar ou no último mês de inverno (por cansaço) ou no primeiro de primavera (por medo do verão).

Você não acha que o Sony do Dia de Cão era um grande cara? Ofereceu uma verdadeira festa pro povo, e tudo por amor, para pagar a operação de mudança de sexo de Leon.

Hoje à noite tem espetáculo. Ontem fui vender entradas na Filosofia. Fui de aula em aula, fiquei lá da uma às sete da noite. Vendi sabe quantas? TRÊS. E assim mesmo,pra gente conhecida, Glenda, Maria Augusta e Mossmann. Em volta a maior agitação, panfletos mis, papos incríveis (“dialética” continua sendo uma das palavras mais usadas...), eu me senti tão velho sentado naquela escrivaninha toda rebentada, usando uma garrafa vazia de pepsi-cola como cinzeiro, e sem conseguir acreditar em nada daquilo.
Outra noite bati papo com Tânia Faillace, foi ver o espetáculo “apesar de terem dito pra mim que era a apologia da magrinhagem”. O que significa magrinhagem? O mais engraçado é que a própria Tânia está com uns ares meio freaks, botas, cabelos presos até a altura das orelhas e depois muito crespos e enormes até os ombros. Ficou contando de como um choifer de taxi tentou RAPTAR o Daniel em, plena 24 de outubro, ás 6 da tarde, depois perguntou se eu estava fazendo psicoterapia porque me sentia mais paranóico ou mais esquizofrênico. Conheci em Estocolmo um brasileiro chamado Paulo não-sei-de-que, estava fora do Brasil há 5 anos, já tinha rodado toda a Europa, África, América do Norte e Central e dizia que isso aqui era uma TABA – na época fiquei meio ofendido, ainda tinha meus brios, ultimamente tenho lembrado dele.

O “Desescalado” é bastante bom – surprise! Sabe o que acho? Que tem escritores demais no país, eu ando me sentindo INTOXICADO de literatura – como é que fui entrar nessa? Quem sabe eu vou criar galinhas, qualquer coisa assim? Seria bem mais saudável. E esas plêmicas, esses pequenos escândalos todos me desgostam muito – acho tão VULGAR (soa meio aristocrático?), ando inclusive meio de pé-atrás coma “Escrita” – pode ser paranóia minha, mas me parece que há por trás daquilo uma jogada jornalística (no mau sentido), de fomentar (palavrinha gozada) escandolozinho , fofoquinhas, intrigas, - tudo muito provinciano, muito brasileiro (naquele sentido do brasileiro do Estocolmo), muito BURRO. O que está vindo á tona é uma imensa mediocridade, chacrinhas, grupelhos – duma bichice incrível.
Não sei, Nei, mas uma coisa que eu gosto muito – e que me torna cada vez mais difícil – é dignidade. Tudo isso me dá muito nojo, mas tem seu lado bom, é escola, é cabaré, de outras vezes não serei tão ingênuo nem tão sincero, não creio que valha a pena a gente se meter nesse tipo de coisa, nesse mundinho de vaidades feridas. “Não quero oferecer minha cara como Verônica nas revistas”. Falar em Drummond, almocei com Rosane Porto no domingo. Está linda, conseguiu internar-se no São Pedro, fica o dia inteiro sem fazer nada, com mil psiquiatras em volta – felicíssima. Incrível, não é? Acho que conseguiu uma boa solução, já que não conseguia mesmo adaptar-se aqui fora.

Acho que Ida e Daniel já devem estar aí. Um beijo para eles. Tô esperando que tudo dê certo para que eu possa ir em julho. Seria muito bom pra mim. Espero que o teu trabalho esteja legal, que você esteja contente. Se alguém perguntar por mim, diga que estou fazendo cursinho para o vestibular da Física, no IPV – é minha chave de ouro.
 Teu
Caio



Esclarecimentos de Nei Duclós: RETORNO - Alguns esclarecimentos: 1. IPV é o Instituto Pré-Vestibular de Porto Alegre. Fazer IPV para Física é o máximo do deboche. 2. Há dois Daniel nesta carta, um nada tem a ver com outro. O Daniel do final é o meu filho. 3. Magrinhagem se refere aos magrinhos, como eram chamados os moços gaúchos daquela época e que se dedicavam à literatura, ao teatro, à arte, usavam cabelos compridos e não compactuavam com a hegemonia marxista. Era sinônimo de alienação, vagabundagem. 4. Movimento, Escrita, Ficção: imprensa alternativa a mil. 5. Continental era o forte cigarro sem filtro muito popular. 6. Heckeriano se refere ao escritor Paulo Hecker Filho, poeta e crítico super rigoroso.



Blog de Nei Duclós http://outubro.blogspot.com/








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